Burnout passa a ser doença do trabalho; saiba os sintomas e o que muda a partir de agora

A Síndrome de Burnout passou a ser considerada uma doença ocupacional desde 1º de janeiro por conta da nova classificação da OMS (Organização Mundial da Saúde). A doença, conhecida também como a síndrome do esgotamento profissional, foi oficializada como “estresse crônico de trabalho que não foi administrado com sucesso”. Antes, era tida como um problema de saúde mental e um quadro psiquiátrico.

Uma pesquisa feita pela consultoria McKinsey & Company e pela organização LeanIn ouviu mais de 65.000 pessoas de 423 empresas nos Estados Unidos e Canadá e chegou a uma conclusão assustadora: 42% das mulheres sofrem com sintomas de Burnout. Entre os homens, a taxa é menor – 35%. Os índices são de 2021. No Brasil, o cenário não é diferente: segundo a ISMA-BR (International Stress Management Association no Brasil), 30% dos profissionais do País convivem com o problema.

O analista de produtos João (nome fictício), de 40 anos, entrou para esta dura estatística em 2019, quando foi diagnosticado com princípio de Burnout por um psiquiatra. A suspeita em relação ao quadro, porém, foi levantada por uma dermatologista.

“Tenho a pele muito sensível e faço acompanhamento frequente. Em uma das consultas, a médica me disse que algumas manchas que haviam aparecido e a queda de cabelo poderiam estar relacionadas a estresse e me encaminhou a um psiquiatra”, lembra.

Os sintomas iam além do que era notável aos olhos. “Sentia aperto no peito, dificuldade de pegar no sono e falta de concentração. Tudo porque eu era perseguido no trabalho. Era uma sensação horrível, de estar sendo vigiado o tempo todo”, conta João.

A ele foi prescrito o uso de antidepressivo, mas a solução definitiva só veio com a mudança de departamento. “As minhas alternativas eram atacar ou fugir. Como não é da minha natureza atacar, eu ficava retraído. Passei a pandemia inteira assim e pensei em pedir demissão. Essa situação afetava todas as áreas da minha vida. Até que prestei um processo seletivo interno e fui promovido em outubro. Me livrei do setor que me adoecia e hoje me sinto muito bem.”

A especialista em desenvolvimento pessoal Dani Costa também atingiu o esgotamento mental há alguns anos. Decidiu compartilhar a vivência no livro “Você é o Caminho”. À procura de respostas, ela escolheu dar uma pausa no turbilhão da rotina de executiva e buscar a cura.

“Já vinha com estafa e escondia o problema. Era muito focada em entregas, resultados e alta produtividade. Alcancei meu limite quando comecei a sentir muita dor de cabeça, náusea, vômito e cheguei até a desmaiar. Precisei me afastar e, quando voltei ao escritório, meu chefe chamou minha atenção porque meu desempenho tinha diminuído. Percebi naquele momento a falta de empatia e de uma liderança consciente”, diz Dani.

A especialista eaponta que muitas pessoas que sofrem com o Burnout não encontram acolhimento, consciência ou entendimento, assim como ela mesma vivenciou. “Foi por isso eu escrevi o livro. Muitas vezes nós mesmos temos que buscar as nossas saídas. Se o ambiente está trazendo dor, desconforto, abuso, assédio e ele não vai mudar, somos nós que temos que promover a mudança”, afirma.

Sintomas

O Burnout está muito além de um estresse comum. Segundo Mary Sandra Carlotto, psicóloga, doutora em Psicologia Social e docente do programa de pós-graduação em Psicologia da Unisinos (Universidade do Vale do Rio dos Sinos), no Rio Grande do Sul, é possível determinar três grandes conjuntos de sintomas.

“O primeiro é a exaustão física e emocional com sensação de esgotamento de recursos pessoais para lidar com os estressores do trabalho. O trabalhador percebe que já não possui o mesmo entusiasmo e energia como em épocas passadas. Há um declínio importante da capacidade de lidar eficazmente com os fatores que geram estresse e redução da sua capacidade laboral”, explica.

O segundo ponto é o distanciamento. “Para lidar com a exaustão e perda de energia, o trabalhador vai aos poucos se afastando das pessoas que necessitam se relacionar no seu trabalho: chefia, colegas, clientes, usuários, pacientes, alunos etc. Desenvolve uma postura fria e endurecida.”

Por fim, a psicóloga cita a falta de realização profissional que se manifesta nos sentimentos de insatisfação com seu desenvolvimento e declínio no sentimento de competência e êxito. “O trabalhador começa a pensar constantemente em mudar de local de trabalho e até mesmo de profissão”, aponta.

Segundo Sergio Baldassin, psiquiatra e professor de Psiquiatria no Centro Universitário FMABC (Faculdade de Medicina do ABC), o Burnout em geral ocorre em quem gosta de sua profissão, mas está sem recursos pessoais ou apoio institucional. “Um bom exemplo é o dos médicos que trabalham sem medicamentos necessários, sem testes, sem folgas, sem uma boa chefia e equipe completa e saudável, sem leitos, ou seja, basicamente sem poder oferecer o que há de melhor em seu trabalho.”

Tem prevenção?
Para evitar que o Burnout encontre terreno fértil, Mary cita algumas ações fundamentais: busca de apoio social, troca de ideias e apoio com chefia, colegas e família. “Não se isole e mantenha expectativas realistas em relação ao seu trabalho. O desenvolvimento da autoeficácia também é uma importante medida”, elenca.

Já Baldassin diz que é possível se prevenir contra a doença não apenas com cuidados pessoais, mas também institucionais. “Em alguns casos, se a empresa em que a pessoa trabalha está ‘doente’ e não melhora, talvez seja o caso de procurar outro local de trabalho”, diz.

O psiquiatra cita ainda alguns pontos que podem chamar a atenção e servir de termômetro na hora de avaliar a atual situação profissional:

– Falta de controle: a incapacidade de influenciar decisões que afetam seu trabalho, como sua agenda, atribuições ou carga horária;
– Dinâmica disfuncional no local de trabalho: talvez você trabalhe com um agressor;
– Extremos de atividade: quando um trabalho é monótono ou caótico, você precisa de energia constante para manter o foco;
– Desequilíbrio na vida profissional: se o seu trabalho ocupa tanto tempo e esforço que você não tem energia para passar tempo com sua família e amigos, pode se queimar rapidamente.

Tratamento
No geral, casos leves podem ser tratados com psicoterapia. Basicamente, a medicina recomenda a regra “big four”: comer bem, dormir bem, ter atividade física e algum mecanismo antiestresse.

“Associações com quadros de ansiedade e de depressão ou outras doenças físicas podem ocorrer simultaneamente, e aí em geral se usam antidepressivos e até calmantes por período limitado”, explica o professor da FMABC.

O docente ressalta, entretanto, que não adianta apenas cuidar de si e de sua resiliência, que pode ser aprimorada. A fonte do problema tem que ser atacada. “Empresas desconectadas do mundo moderno e da gestão eficiente não reconhecem estas necessidades. Boas empresas reservam recursos para esta finalidade”, frisa.

Em quadros já avançados da doença, Mary faz questão de lembrar que a ajuda profissional e conjunta é fundamental. “Quando o problema já causou impactos importantes no trabalhador, este deve procurar auxílio médico e psicológico.”

O desafio das empresas

Com a mudança de entendimento sobre a Síndrome de Burnout, as empresas que até agora não haviam se atentado à necessidade de cuidar da saúde mental de seus colaboradores precisam correr atrás do prejuízo.

“É esperado que as empresas se comprometam muito mais com o bem-estar e a saúde mental dos colaboradores, não apenas como um projeto pontual, mas sim como uma meta, um compromisso. Trata-se de um movimento parecido com o que houve nos últimos anos com a diversidade, quando as companhias começaram a assumir compromissos públicos e contratar profissionais especialistas na área para liderar a frente de D&I (diversidade e inclusão). Da mesma maneira, pode-se esperar um foco maior na contratação de profissionais especialistas em saúde mental, por exemplo”, analisa Guilherme Dias, CMPO e cofundador da plataforma de recrutamento Gupy.

Para construir um ambiente saudável, as corporações devem, na visão de Dias, entender antes de mais nada que os trabalhadores não são uma família, mas sim um time, uma comunidade reunida em prol de um objetivo em comum. “Neste sentido, por mais que o colaborador tenha o famoso ‘sentimento de dono’, ele tem uma carga horária que deve ser respeitada, assim como os seus finais de semana, feriados e férias, e que para trabalhar pelo objetivo em comum ele precisa estar se sentindo bem, descansado e sem sobrecarga.”

Outro ponto muito importante é ouvir os colaboradores através de pesquisas de clima, para entender se todas as ações realizadas estão surtindo efeito e se algo pode ser melhorado ou corrigido, ressalta Dias.

Para Ana Carolina Peuker, CEO e fundadora da digital health startup BeeTouch, o investimento em um ambiente de trabalho mais saudável deve ser planejado a médio e longo prazo. “Não se pode tratar a saúde mental como algo instantâneo, com soluções paliativas ou com a ideia de que benefícios de saúde são suficientes. O trabalho deve ser mais amplo e sistêmico, incluindo diagnósticos técnicos, acompanhamento de indicadores, criando rastreabilidade do risco e buscando, através de metodologia bem definida, encontrar sua origem. Certamente, não são palestras ou ações isoladas que vão mitigar tais ameaças”, afirma.

A CEO diz que a tecnologia oferece a possibilidade de uma gestão inteligente, baseada em dados, para que a visão das necessidades dos colaboradores seja bem nítida. “Assim, os gestores podem tomar ações precisas, orientadas por dados, dirigidas ao que os trabalhadores necessitam. Definitivamente, não há uma solução ‘tamanho único’ para todas as empresas.”

Ana Carolina aponta que as empresas ainda diferem muito em relação à curva de maturidade quanto às ações em saúde mental. “O que mais existe é a inatividade ou uma atuação reativa, somente quando o problema surge. Aquelas com maior nível de maturidade já instituem políticas e alinham-se com o que podemos chamar de ‘compliance em saúde mental’, que inclui práticas, orientações de conduta, procedimentos, planos de ação e políticas direcionados ao tema. A resposta a esses problemas deve envolver, educação e tecnologia; coleta de informações qualificadas; diagnóstico precoce e, a partir disso, planejar o acesso, cobertura, ações e benefícios”, finaliza.

Novo entendimento, novos direitos

Vinícius Pacheco Fluminhan, professor de Direito Previdenciário da Universidade Presbiteriana Mackenzie, campus Campinas, explica que associar doenças psiquiátricas ao trabalho não é tarefa simples. Essa relação de causa e efeito deve levar em conta funções exercidas, tipo de exigência, carga horária, nível de cobrança e se houve assédio moral. “Todos esses elementos podem ajudar o médico perito a verificar se aquele esgotamento está mesmo relacionado ao ambiente de trabalho”, diz.

É o perito do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social), aliás, quem vai determinar se o profissional em questão poderá ser afastado temporariamente e continuar recebendo pela Previdência. Nesse contexto, é importante que o beneficiário se muna de todos os documentos e laudos que possam comprovar o quadro. “Ao definir a doença como um fator de incapacitação ao trabalho, isso gera um benefício – seja o auxílio-doença ou a aposentadoria por invalidez. Importante ressaltar que a associação da doença com o trabalho gera consequências, como a estabilidade de pelo menos 12 meses após o retorno às funções. No caso de uma doença sem essa relação, como uma depressão comum, não há estabilidade garantida”, explica.

Além disso, o advogado afirma que a empresa é obrigada a continuar depositando o FGTS para funcionários afastados temporariamente por males relacionados ao trabalho, o que também não é exigido no caso de doenças sem essa conexão.

Para Fluminhan, a nova classificação da OMS fará com que as empresas se responsabilizem mais pela saúde de seus times, seja por consciência ou por retaliações jurídicas. “Empresas sérias sabem que não vale a pena fechar os olhos para a prevenção de doenças. O que é negligenciado hoje pode virar um passivo trabalhista amanhã. Acredito que o olhar a partir de agora será de mais cautela, mesmo porque, ou as companhias e seus líderes levam a sério alguns limites, como respeito ao horário de trabalho de seus empregados, ou cada vez mais haverá colaboradores doentes e ninguém – funcionário, empresa ou sistema de saúde – ganha com isso”, finaliza.

Do Metro